quarta-feira, 6 de outubro de 2021

O Mal Estar na Civilização: (des)enlaces

 Não sei qual foi o momento em que fui fisgada pela psicanálise. No curso de psicologia, eu percebia a psicanálise entremeada em boa parte da grade curricular, embora se tratasse mais de conceitos compartimentalizados, talvez pelo bem da didática... 1a tópica, 2a tópica, fases do desenvolvimento psicossexual, mecanismos de defesa, estruturas...

Embora esses conceitos sejam fundamentais, não foi a partir daí que a psicanálise me instigou.

Pensando bem, não teve um momento exato, foi um processo que foi acontecendo, sem que eu tivesse tomado como uma decisão.
Mas sei que O Mal Estar na Civilização teve muito a ver com isso. Foi o texto que marcou, senão um encontro, uma espécie de encanto com a psicanálise.
Primeiro texto de Freud que li, quando eu ainda  não sabia muito bem que a psicanálise era uma outra coisa, além da psicologia.

Foi quando eu percebi que a psicanálise não se debruçava apenas no que é da ordem do intrapsíquico ou do núcleo familiar... Mas que há algo além, algo do social e da cultura que nos atravessa enquanto sujeitos e que afeta a escuta do sujeito do inconsciente.

A psicanálise pra mim, era uma antes desse texto, e foi outra depois.
 
Desconfio que foi aí que iniciou o meu percurso, mesmo que eu ainda não soubesse que era isso... A partir daí comecei a caminhar meus passos pela  via do desejo, escolhendo mestras e mestres ainda na universidade, cuja transmissão me afetava, como antes não acontecia... Fui escolhendo caminhos que me aproximavam cada vez mais da psicanálise e do que ela fazia transbordar em mim.


* Texto originalmente publicado no Instagram @levebruma.psicanalise em 20 de fevereiro de 2021

"Na bruma leve das paixões que vem de dentro..."

 Há um tempo nascia esse perfil, espaço criado para dar um destino ao que me transborda de  encontros entre psicanálise, arte, cultura, poesia, afetos... Eu queria um espaço que aproximasse tudo isso.


Alguns de vocês já captaram a referência. Me inspirei na música "Anunciação", uma das minhas preferidas de Alceu Valença. Tomei a liberdade de trazer o meu olhar, já atravessado pela psicanálise, para a leitura dessa obra que pra mim, fala de afetos, mas pode dizer também do inconsciente: como uma bruma nos impede  de acessar seus registros, em sua realidade nua e crua. Mas essa bruma  não é tão densa que possa impedir que algo escape de lá. Que algo nos salte aos olhos, com máscaras, disfarces atravessando cortinas de fumaça...

Algo que se olharmos bem, nos permite fazer nossas travessias...

"Na bruma leve das paixões que vem de dentro..." - inconsciente, morada de desejos. Desejos que nos movem, seja para buscá-los ou ainda para fazer com que nos escapem...
"... tu vens chegando pra brincar no meu quintal..." - ahh... o desejo, um travesso que tem algo do infantil e que brinca conosco!
 
E eu brinco: com a escrita e seus (des)enlaces,  tento transmitir algo da psicanálise, não tanto do que nela tem de técnico, mas daquilo que nela me afeta.

"Tu vens, tu vens... eu já escuto os teus sinais" - o desejo se anuncia entre brumas que o mantém envolto em mistério... no ato falho, no sonho, no sintoma, no chiste, na repetição, na poesia, na arte, no que pulsa nas veias e emerge à flor da pele...

Ao escrever esse texto, busquei o significado da palavra "bruma". Eis o que encontrei:
*nevoeiro;
* figurado - o que dificulta o entendimento claro de alguma coisa; o que é vago, não se compreende facilmente;
*obscuridade, mistério, incerteza.

O encontro com os sentidos dessa palavra reafirma a escolha deste nome. Com ele, traço uma borda possível em torno de algo que é constitutivo do sujeito: o desejo e suas contradições; o sujeito do inconsciente se apresenta envolto em mistério, e não é assim tão facilmente compreensível. Para desvelá-lo é preciso entrar num jogo de decifrar enigmas!

Leve Bruma... a poesia enlaça a arte, que flerta e faz amor com a psicanálise!



*Publicado no Instagram @levebruma.psicanalise em 20 de janeiro de 2021

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

"Libertem o amor"

Imagem registrada por Lara Klinger, em dezembro de 2014.


Há exatos 6 anos, uma amiga e eu voltávamos de um local onde fazíamos estágio curricular, quando vi essa frase rabiscada em uma parede da cidade, e pedi que ela registrasse. Na época, postei a foto, com algumas reflexões sobre achar bonito ver uma manifestação como essa, em uma cidade tão predominantemente conservadora... e sobre a necessidade de libertar o amor, de preconceitos e de libertá-lo também de dentro de nós (parafraseando o meu próprio texto).

Hoje, revendo essa lembrança, penso também no quanto os discursos normatizadores aprisionam os afetos, e no sofrimento que causa a tantos sujeitos essa tentativa de docilização de corpos e subjetividades. Mas penso também que a cidade fala, inscreve nas suas paredes o que os discursos hegemônicos tentam silenciar. A palavra circula em muros cinzas, pulsa afeto e resistência. Aquilo que é político, que é público, aquilo que se refere a direitos... atravessa a vida privada: a liberdade de ser o que se é, e amar a quem se ama...

Sobre aquilo que é singular do amor, penso na clínica e na célebre frase: "não se faz outra coisa em análise, senão falar de amor” (muito bem dita pelo nosso queridíssimo Lacan). E na análise fala-se mesmo de amor; da falta do amor; daquilo que se pensa ou se teoriza sobre o amor e que talvez não o seja; das idealizações e fantasias que permeiam as relações de um modo geral; da forma de se relacionar que tem muito dos primórdios da formação do sujeito.

Lacan diz também que "o amor é dar o que não se tem, a alguém que não o quer". Aí que está o abismo. Aprendemos, em psicanálise que o amor é sobre incompletudes, faltas. Mas são os abismos que nos movem a construir pontes: que aproximam o quanto é (im)possível, mesmo com faltas e restos: o amor, seja ele qual for, é uma conta que não fecha.

É preciso libertar o amor. Não em um sentido universal, incondicional, romantizado e repleto de "gratitudes"... mas no sentido de libertar a circulação do afeto, e deixar-se afetar por quem ou o que lhe causa algo que as outras pessoas ou coisas não causam.

É preciso encontrar palavras para libertar o amor. É preciso traduzir em palavras, mesmo que elas sejam insuficientes, mesmo que elas não cheguem a coisa em si: para dissipar um pouco daquilo que é sintoma, e se repete na busca do (re)encontro com um desejo, que faz reviver as mesmas narrativas.

É preciso a palavra para fazer circular, libertar o amor em si, e possibilitar outro desfecho. Finalizo citando, tal como fiz no post original, Nando Reis: "tornar o amor real é expulsá-lo de você, pra que ele possa ser de alguém"


*Texto postado no IG @levebruma.psicanalise em dezembro de 2020.