quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Exposição "Para sempre, nunca mais"


Tive a oportunidade de prestigiar as obras do artista Susano Correia (acompanhe o trabalho, incrível por sinal: facebook/instagram) na exposição "Para sempre, nunca mais", que esteve em Caxias do Sul na Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim, sob a curadoria de Tharciana Goulart e Maristela Müller.

E como não falar de algo que me tocou tanto? E como não falar a partir desse lugar tão difícil, que me atravessa e sempre me convoca, que é o da psicanálise?

Estamos imersos, de uma forma ou de outra, em uma conjuntura política desumana. Uma tessitura de retrocessos pautada pelo ataque sistemático a direitos básicos, pelo sucateamento de políticas públicas, e por práticas de silenciamento da pesquisa acadêmica e científica e também das artes... não bastando isso,  a realidade nos sufoca com a ascensão de discursos (sempre ideológicos) de ideais de felicidade, completude e ilusões de que pode-se tudo (e pela via da meritocracia, claro!) Afinal, basta querer e ir atrás, independente das condições sociais e subjetivas que demarcam fronteiras entre realidades distintas...
Em meio a tudo isso, essa exposição é um suspiro. Salve a arte, pois a arte nos salva! 

Sempre há um especialista disso ou daquilo querendo nos vender a solução para todas as nossas mazelas, seja em forma de diagnósticos, frascos ou manuais de como gerir melhor o nosso tempo ou de como alcançar sucesso e plenitude em todas as áreas da vida... afinal tudo é mercadoria (e viva o capitalismo, não é mesmo?)
À deriva  em meio a angústia imobilizadora oriunda de tantos excessos,  que bom que temos a psicanálise,  que bom que temos a arte para construir novos lugares, novas vias para confrontar-nos com nossos vazios.
A arte salva, e nos coloca em cena a partir da sua linguagem que  encontra eco em algo que nos falta: somos seres de fal(t)a, "destinados à incompletude", como pontuou Lacan. Não podemos tudo, e ainda assim "por nossa posição de sujeitos, sempre somos responsáveis", ainda citando Lacan, e tudo isso nos faz caminhar...

Acrescento que somos sim responsáveis por sustentar-nos enquanto sujeitos, mas não sejamos culpabilizados por nossas angústias e nossos fracassos, porque ao contrário do discurso hegemônico capitalista, nós não podemos tudo. Não basta querer e trabalhar duro, não basta pensar positivo ou ainda ser disciplinado. Não podemos alcançar tudo, atender à tudo o que nos é demandado, seja pelo outro ou por nós mesmos. Somos apenas humanos, portanto falhos e tudo bem! Somos apenas humanos, portanto é preciso (re)conhecer que desejos nos convocam e escolher qual(is) posição(ões) de sujeito sustentar, pois mais uma vez, não se pode sustentar tudo. O fardo de bancar a si próprio já é pesado o suficiente.

Quando nos reconhecemos incompletos, quando a incerteza nos implica em um questionamento sobre nós mesmos, é justamente esse campo de (im)possibilidades que se torna fértil a novas criações, novas vias de encontro com nossos abismos e desejos. Aí  que a linguagem, a arte e a própria psicanálise cumprem sua função. Não de preencher, pois isto não é da ordem do possível... mas apontar as contradições, criar pontes para transcender abismos, atravessar fronteiras, ressignificar.
"Para sempre, nunca mais" é uma exposição extremamente sensível, carregada de  delicadeza... ao mesmo tempo que pesa de uma precisão cirúrgica, quase agressiva. Ela abala certezas... Nos mostra, como um espelho, que somos sujeitos marcados, incompletos. Somos tecidos de retalhos e furos...
A arte traduz o indizível, que ecoa em cada um de nós, e nos implica em uma rede de significantes, nos convocando a assumir uma posição. 
Talvez por isso a arte seja, ainda hoje, de uma forma ou de outra, marginalizada. A verdadeira arte subverte a (des)ordem que nos é imposta. Se contraidentifica aos discursos normativizantes.
Em um mundo de soluções instantâneas, são poucos os que tem coragem de se aventurar às margens de seus abismos. A vertigem causada é o desconforto e o caminho é tortuoso, porque nele é preciso reconhecer o vazio, a angústia, o sofrimento.
Sim, é preciso coragem para deixar-se afetar e mergulhar em si. É um golpe ao narcisismo, se perceber entre incompletudes.
Mas esse caminho traz as melhores possibilidades de um encontro consigo mesmo, e quem sabe de encontrar não uma felicidade idealizada, mas uma felicidade apesar de, uma felicidade que tolera a falta e as frustrações e mais do que isso, que carrega em si a liberdade de sustentarmos o que somos, e o que de nós devir. Haja arte e haja análise para dar conta das contradições e de tudo o que se encontra à deriva no universo que somos, cada um de nós.

Salve as/os artistas; salve as estudiosas e estudiosos de objetos tão complexos: o psiquismo, a linguagem, o sujeito - ser desejante, incompleto, inacabado... de retalho em retalho, costuradem entrelinhas que se inscrevem, (re)escrevem e pulsam no movimento da vida.







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