quarta-feira, 6 de março de 2019

O ano começa depois do Carnaval (?)

Dizem que o ano só começa depois do Carnaval. Quantos significantes carregam esse discurso...
Estender a estadia no âmbito da fantasia parece ser vital. Ahh... a fantasia! Elo que transpassa o real e o simbólico: estrutura a realidade psíquica e insinua uma verdade.
A fantasia está ligada ao desejo. E ela liberta os traços submersos no psiquismo, que esperam o ano inteiro para ver o bloco passar, para fazer de si enredo, tecer outras narrativas... 

Foliões, brincantes... sujeito do inconsciente em cena, no bloco, na avenida, na praça, no asfalto. Transborda, esgota a energia para recarregar, ensaiando recomeços. Paradoxal via de descarga do que não se esgota: desejo impulsionado ao movimento, circula.

Som e dança, corpo e sujeito. Coreografa-se em cortejo fantasias de quereres e medos. Apropria-se de algo que lhe escapa: sua posição em relação à própria falta. Somos todas e todos destinadas/os à incompletude, já dizia Lacan.
E por um momento o sujeito faz da fantasia, morada. É só o Carnaval, mas a fantasia carrega em si algo de real.

Aponta uma aproximação do sujeito em direção ao seu desejo, mas também demarca a distância entre ele e aquilo que lhe falta.
E a vida é movimento o ano inteiro, não só no Carnaval "roda gigante eterna, começo sem fim"... como diz a música da Nação Zumbi, é uma ciranda a rodar. Altos e baixos, tensionamentos e torções, afastamentos e aproximações. Roda gigante que eleva, leva mais perto do céu, que sempre escapa: somos, afinal, destinadas/os à incompletude.

A fantasia autoriza bancar o próprio desejo: tudo pode, é Carnaval! Corpo encena o que está latente no inconsciente, na cultura. Corpo mural, arte, performance... parque de diversões, repleto de personagens à deriva, à espera para serem incorporados. Até quem não é artista corporifica homenagens e confrontos: o corpo é político, a ética do desejo se inscreve, subverte o interdito.

O bloco passa, carnaval finda, penduram-se as fantasias... suspensas à espera do próximo ano. No final varrem-se  as cinzas, o pó que resta de uma realidade inventada, e nem por isso menos de verdade: pelo contrário, concreta e feita de música e cor, brilho e fantasia. De discursos que incidem no real.

Reorganizam o sujeito, reinventam retalhos do seu desejo. Costuram-se novas malhas com resquícios de outros carnavais, com outros pontos e outras tessituras.
Fios de subversão que recontam, reencantam e reencenam discursos.

E assim, ano a ano; Carnaval a Carnaval; enredo por enredo; bloco por bloco; desejo por desejo, sujeitos e coletivos se inscrevem: tomam fôlego para começar de novo, o novo ano.

E o ano, dizem, só começa de verdade depois do Carnaval.
Mas que fantasia, se o que dali emerge também é real!

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Referências:
Abel, M.C. (2011). Verdade e fantasia em Freud. Ágora, 14(1).
A fantasia - Glossário Freud | Christian Dunker | Falando daquilo 15
Fantasma, fantema e fantasia na psicanálise | Christian Dunker | Falando nIsso 104